Retrato vagabundo

Sem a literatura, estou morta — isto é um fato. Nenhuma novidade. O tempo passa muito rápido ou ele é torturante demais? Ambos, suponho. Que tenho o coração aflito, não é novidade, agora quantas vezes vou me sentir assim? É o fim? Me ensinaram que tudo tem começo, meio e fim, estou indo para o meio, mas a trama, a trama não muda? A mesma coisa? Que maçante!
Todos que uma vez elogiaram que sou responsável nunca me viram em alegria — viro uma tola completa —, pois essa crença mudaria para o desgosto. Sou intensa, oito ou oitenta, sem saber qual persona usar. As pessoas gostam da Nieldy que ajuda, da Nieldy que escuta, da Nieldy que tem tempo, da Nieldy “Mãe Virgem”; será que gostariam da Nieldy boca suja? Da Nieldy reclamona? Da Nieldy que ignora e finge que nada aconteceu? Da Nieldy paranóica? Da Nieldy medrosa? Da Nieldy não-Nieldy?
No fundo, essas pessoas são apenas a mim mesma que não se gosta. Mendigo amor e atenção, como uma atriz ignorada na performance no palco, querendo ser uma estrela. Quem gosta de mim realmente gosta de verdade ou da versão que criaram na cabeça?

Sabinella (1912), John Wiliam Godword, óleo sobre tela (modificada por mim)

Diariamente penso em ter um vício que me corroeria, cigarros moram em minha cabeça. Se a eu do passado visse quem estou me tornando, fugiria em meio as lágrimas, gritando que sou um monstro. É uma besteira pensar em cometer esse vício, já que perdi meu avô para ele e deveria servir-me como lição, todavia sou teimosa e ignorante. Quero algo que me faça sentir uma dor para chacoalhar-me de volta a realidade, lembrete do delírio sufocante de se estar viva — umbral entre relaxar e a agonia. Irá me deixar feia, com bafo, ter olhares tortos, comentários rígidos. Sim, sou hipócrita.
O umbral entre a garota boazinha e a garota malvada, a coelha e a ovelha negra. As expectativas próprias e alheias influenciam na mente, surgindo mais dúvidas, mais redemoinhos, mais caminhos, mais possibilidades no País das Maravilhas. Aquela insegurança de sair da caverna ou achar que já saiu, faz bem que ignoremos a raiz, fingindo que está tudo no controle, na esperança do problema ir embora — ele ainda vai estar lá, no fundo.
Livro-me de mim mesma porque já não me amo mais. Sou tão boa em fingir que confirmo que sim, me amo, é um efeito água mole em pedra dura, tanto bate até que fura. Por outras palavras, creio que me amo de verdade, que gosto de estar presa neste corpo, nesta vida, neste momento. Se o Espírito existe e faz parte de nós, quero que Ele mostre a verdadeira forma de mim, de quem sou.
Matei a mim mesma pois queria ver quem era por dentro, a carne avermelhada, sem gordura, as construções que me formam. Para ser franca, a estrutura da minha construção é uma verdadeira torre de babel.

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