Proscrita

 “Eu sou gente.Eu não sou santa igual a você, eu sou gente! Eu sofro, eu escorrego e preciso me segurar em alguma coisa pra me levantar e manter de pé! Igual a todo mundo... Menos os santos, claro.”
Hilda Gualtieri Müller (Ana Paula Arósio), Hilda Furacão (1998).

Odalisca, óleo sobre tela, Théodore Jacques Ralli

FRANCAMENTE, NUNCA FORA AGRADÁVEL, NUNQUINHA. Tudo era fora de órbita, uma enxaqueca delirante que apenas estava lá, desagradavelmente. Para expressar tais coisas, não expressava, simplesmente — para quê iria, ora? Contudo, já era fato da formação de sua persona, não havia como evitar. “Vou ir dormir agora”, não mudaria o fato de ser quem era, sem caráter, sem pudor, apenas acrescentaria motivos para o descaso inevitável. Não adiantaria insistir em mudanças, pois logo voltaria a estaca zero, um zero grande e oval, como seu rosto. Quem a amará? Quem enxugará  suas lágrimas derramadas antes de dormir? Se houvesse pena, poderia se explicar a persona, passando por cima da nomenclatura “proscrita”.
Caricata, desonesta, cansativa e gulosa. Comia mais para preencher o vazio dentro de si, vomitando quando o limite era exacerbado. Patética. Por ora, também se privava de alimentação, apenas para se sentir no controle de algo em sua vida, mesmo que custasse a saúde. O poder de escolher e controlar era irresistível. Quem? Quem é? Ora, Fulana. Ou será Sicrana? Ou Beltrana? Quem sabe... Pode ser qualquer uma, qual a importância?

...IMPORTÂNCIA...

Não, não há importância alguma.
Era uma poetisa ao calar-se, o doce silêncio pairava para evitar o descontentamento.
— A culpa tem remédio? — questionou, ainda moça, a uma senhora durante o terço das mulheres.
A senhora lhe lançou um olhar desaprovador pela interrupção durante a oração, deu de ombros e com uma voz baixa respondeu:
— Se tivesse, ninguém iria ficar sofrendo. — então voltou a rezar.
Amélia, no entanto, não o fazia mais. Viverei meu próprio pecado para afundar-me no meu próprio veneno, refletiu, escreverei minha própria vida para morrer do meu jeito. Talvez tenha nascido para o mal, talvez o mundo seja hostil, ou eu só seja uma garota proscrita. Renuncio tudo aquilo ensinado, aprendo por mim o novo mundo, o novo Gênesis, o novo princípio que somente eu sei qual é. A grandiosa descoberta do Novo Mundo. 

...CALE-SE...

Ai, um calafrio! Ai, estremeci! Ai, ai! Congelante, cortante, dilacerante.
— Joga pedra na Amélia, joga bosta na Amélia! — gritava a lider da multidão raivosa. — Ela merece, ela merece! Coquette sem alma, no cabaret vaga, vendendo o corpo murcho, muído, em troca de um prato de sopa. Herege maldita! Abandonou a própria vida, fundou sua ruina!

...MALDITA AMÉLIA...

Sentia frio, as roupas não a cobriam, mas conseguir alguns trocados era necessário. Quando Amélia poderia finalmente sorrir? Apenas quando o cálice de vinho tinto fosse derramado, juntando-se ao seu sangue e pecados. Fome. Ela sempre sentia fome, apesar de estar com o estômago cheio, sentia a fome voraz, um vazio enorme a corroendo, como se não fosse o bastante. Quando era o bastante, vomitava, pois queria mais espaço para preencher o vazio dentro do estômago. Dobrou os joelhos perto do altar, olhou Jesus Cristo, bem nos Olhos Sacros Dele, esperançosa para Ele mostra a verdade absoluta, apenas Cristo mostrará quem verdadeiramente era Amélia. Ele poderia amá-la? Poderia perdoar seus pecados?
Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo...

...AMÉM...

Deu trabalho ao crescer, trouxe decepção ao que antes era motivo de orgulho, depravou-se em prazeres da carne, se perdendo em quem era, tornando-se a mais suja. Definitivamente, não era uma boa pessoa, não fazia questão. Do que adiantava ser boa? Qual era o benefício? Qual a graça de ser boa? Ser má era mais divertido, roubar deixava as coisas mais preciosas, as faziam terem mais valor, o contrário do valor que possui o capital, eram especiais pelo pertencimento, a conquista, a singularidade. Roubou uma rosa na festa de Santa Terezinha do Menino Jesus — não poderia ser classificado como furto já que todos podiam pegar —, como um ato pessoal de protesto contra os “santos” da sua terra, uma confirmação de que poderia se escolher, poderia se abençoar. Por mais que fosse apenas carne que a terra come, poderia ter o controle, entregar rosas a si mesma, ser sua própria santa, ser abençoada na próxima maldição. Tenho valor, quero dizer, sei da verdade e dói, contudo vão ver meus lábios mexendo-se ao em vez de prestar atenção no que quero dizer e, se ouvirem, só irão distorcer para se vangloriar.

...SANTA... 

Um cliente tentou lhe passar um calote, isso o condenou. Com uma faca de cozinha deu dez, quinze, trinta e três facadas, o rasgando do pescoço ao abdômen. Sentiu a textura e o cheiro de sangue fresco, mas nada do remorso que alimentasse sua tão grande culpa. Sentia fome ao ver tanto vermelho, sentiu água na boca, uma fome voraz. Por fim, jogou o corpo no córrego poluído, para então cair de joelhos e chorar. Diferente do choro de todas as noites — o choro de estar viva —, dessa vez foi o horror por sua gula animalesca, choque por querer comer alguém com o intuito de atingir o êxtase, a maior fonte de vitaminas, lipídios e proteínas. Encarou o sangue em suas mãos, com tamanho espanto, não espanto de ter matado, espanto por sua fome e apatia. Amélia seria a mulher mais depravada da cidade, com seus carrascos querendo seus serviços nas altas horas da noite, os verdadeiros proscritos. Depois, era enxugar as lágrimas, passar o batom e seguir em frente.


Comentários

Mais vistas