Todas às vezes

 O que que há com nós dois, amor?
Me responda depois
Me diz por onde você me prende
Por onde foge
E o que pretende de mim
Acontecimentos, Marina Lima (1991)

ATO I — A Tolice

Ofélia (1851-852), óleo sobre tela, John Everett Millais

SURGIU DE REPENTE, NEM MESMO SEI qual o começo — a memória não gravou bem, nervosismo do dia a dia dá nisso, incógnita —, mas sempre houvera algo oculto, sempre há onde estou. Antes dos nomes e palavras trocadas, só existiam os olhares, daqueles quando existe curiosidade e ida ao mundo da lua. Quem é você? O que pensa? Como vive? O que ama e o que sente raiva? Essas perguntas estranhas tão recorrentes quando se está em transe.
Só sei que hoje eu o conheço e ele me conhece, sou Françoise Hardy para ele, mas sou apenas Françoise Hardy? Os sinais não sei interpretar, tenho medo da decepção. Só me resta dialogar, dialogar e dialogar. Tem o frio, o pulsar, o suor, a fala desengonçada e uma bolha que me prende quando os assuntos são expostos a mesa.
Será mesmo? E se não? E se sim? O que há?
O que há? O que há? Françoise Hardy?

···HARDY···

“ATÉ A PRÓXIMA QUARTA VOCÊ VAI VER ALGO”, sim, vi e odiei o que eu suspeitava. Ter a certeza e, mesmo assim, ir, é um dos piores acontecimentos que alguém pode passar. No fundo, só queremos ser utópicos, ao menos um pouquinho, uma lasca de quase nada.
Sempre dizemos: “não será comigo, sou diferente, uso sempre a razão.” Para então culparmos o resultado já esperado, tolice tola. Dizer “Eu nunca” atrai a energia do destino serelepe, que responde “Aguarde”, sem se importar se gostamos ou não. Tola sou, porém sinto mais ódio de mim do que do resultado. O tanto que aconselho não serviu para mim? A empolgação, expectativa e fantasia juntas são a pior combinação possível.
Pode ser que tenha acelerado as coisas, falado demais e meus amigos não são pacientes ou só venho lido Jane Austen demais... Vai saber quem me envenenou primeiro.
Não sinto sentimentos negativos por parte dele, mas de mim. Eu sabia, tinha 99,099% de certeza, no entanto... me deixei levar. Percebo, relembrando meu passado, que não aprendo mesmo. Sou manipulável pela empolgação, ela tem que passar bem longe de mim, me faz ter os pés longe do chão, o que deixa a queda mais dolorida.
Ter a certeza e fazer dói. Não há Françoise Hardy.

···NUNCA···

“O QUE ME FAZ SOFRER E SENTIR QUE o que encheria qualquer mulher de felicidade, ou seja, ter teu maravilhoso amor e as coisas lindas que você me diz, tudo isso me causa ansiedade e me leva ao desespero. Quanto mais eu penso em me entregar totalmente, tanto mais terror eu tenho do que seria de mim se esse teu amor ardente apagasse...” ~Fernanda Torres, Eu Sei Que Vou Te Amar (1986), Dir. Arnaldo Jabor.
Não sei ao certo, mas sei que o que esse monólogo quer dizer porque pensei nisso diversas vezes em devaneio. Quero me entregar, de corpo e alma, no entanto... Ah, Santa Mãe de Deus, rogai por mim! Por que estou nesse limbo? Onde está? Onde está a certeza que me guia? Me entregar totalmente seria aceitar não só o que o outro sente mas o que eu sinto de forma igual, o que é pior do que o outro.
Não confio em mim, no meu dedo podre, na minha falha emocional. Confiar somente nos sinais, ah, os sinais! Que sinais me trouxera, ora bolas?! Só há confusão, confusão e confusão! Tenho dúvidas se vou conseguir amar novamente — daquele jeito bobo e despreocupado. Penso, pensei, pensarei... Pois tudo que é amor, parece com essa antiga imagem utópica e linda, linda!
Por via de todos os malefícios, não me iludirei, não confiarei totalmente. Vou já esperando a derrota, sem esperanças. O amor platônico, por mais unilateral e solitário, é o que mais combina comigo.
Eu sei o que quero, sei exatamente o que quero, mas me proíbo de querer. Me dói, mas doeria-me em dobro pagar para concluir minhas divagações inseguras. No fundo, ainda torço por querer o que quero.

···ARDENTE···

TENHO POBREZA DE TUDO UM POUCO. Começa com a pobreza de amor, gastando o pouco que possuo com alguém que não vale a pena e está me enlouquecendo. Pobreza de confiança que se foi, que existia — verbo passado —, não sobrou nada. Quero dizer, restou saudade. O tempo vai passando, o amor indo embora, deixando a vaga lembrança que tira o fôlego — do modo ruim —, deixa o gosto amargo na boca.
Pobreza de espírito. Ser cética não está funcionando, ser imprudente não funcionará mesmo. Crer, crer sem medo na existência do Ser Superior que tudo sabe, tudo cura, para ser curada desse buraco dentro de mim — será uma passagem para um novo mundo?
Pobreza de ser. Quem sou? Quem fu? Dúvida eterna. Qual caixinha estou? Será que existe a caixinha dos sem caixinha? Deve existir, eu que não sei de tudo. Vejo a fumaça voar e que vai, vai, vai, vai, vai indo... e indo e indo e indo e indo... Até que não vejo mais. Então sinto o vento — não trouxera a fumaça de volta —, trazendo o cheiro de queimado. A fumaça existe, está em algum lugar, não perto de mim. Se foi. Partiu.
Ainda não sou pobre de imaginação, tenho meus sonhos que não realizei. Quero publicar minha prosa, quero aprender ballet, quero falar francês, russo, italiano, inglês, holandês e espanhol, quero viajar para continentes distantes da linha do horizonte — do meu —, ter um emprego, ir morar em uma fazenda para envelhecer e morrer cercada de mato. Morrer pacificamente, feliz, fazendo o que mais gosto — escrever —, ouvindo meus discos e então... Morte.
Pode soar mórbido, mas penso muito na morte, perguntas como  O que seria? Como é? É uma via única, o fim do trilho, fim da linha. Vou estar viva nas palavras, se sobrar qualquer linha gasta com tinta e grafite. Vou morrer, mas viverei naquilo que amei.
Me culpo por não ser disponível para todos, sentindo meu estômago revirar, como se estivesse sendo esquartejada. Não é saudável, com toda certeza que não, mas ainda me culpo. Colocar tudo como responsabilidade minha — dores alegrias — parece, com certeza é, de um egoísmo e prepotência enorme, sem citar a persona de coitado. Não sou o centro do universo, não é tudo que depende de mim, as vidas de terceiros pertencem apenas a eles e nada que me envolva diretamente. Como posso evitar tal mania? Pai, afasta de mim esse cálice!

ATO II — As Cicatrizes

Judite Decapitando Holofernes (1614-1620), óleo sobre tela, Artemisia Gentileschi

DE TUDO O QUE UM DIA TINHA, sobrou desdém. Pena. Não restou a afeição, como bem querias, então reclamas. Não quero ouvir a sua risada contagiante, foi embora a alegria incessante que resultara na simples menção de uma idiotice. Considero-te um encosto em minha vida, que pensei que não retornaria, pensei que fostes para nunca mais voltar. Nunca, nunca, nunca eterno e definitivo. A vida é uma caixinha de surpresas que, ao embarcar no tédio, decide desafortunar as pobres criaturas, mostrando quem ganha, quem detém o controle. Afortunados são aqueles que não se abalam com a Fortuna.
Voltastes, como um fantasma, o próprio encosto de minha vida, o que joguei para debaixo de tapete por não querer encarar. O amor que tinhas deu lugar ao amargor, dor perpétua e dilacerante que lembra do ardor passado assombroso. Todos que voltam só voltam por um motivo: buscar ajuda. Eu, compadecida — idiota de coração mole —, ajudo-os porque dói ver tanta miséria. Ninguém voltaria para me ajudar, nenhuma das pobres almas voltariam — você está incluso.
Aceitei, porém, não por ti, mas por ela. Me subiu um ódio, inveja, ciúmes — por que ela e não eu? —, atualmente culpo minha Vênus em Áries por isso, sem contar com a teimosia taurina do meu Sol junto do sentimentalismo canceriano do meu Ascendente. A Lua em Capricórnio é quem me traz de volta a racionalidade, porquê sabe o que fazer, sabe o que nenhum dos três anteriores daria conta. Não amo duas vezes, uma vez minha confiança perdida dificilmente recuperada. Não há amor, afeição, empatia, confiança, nada daquilo que quis oferecer. Só resta a pena que sinto de ti, uma criatura tão coitada e sofrida.
Você é apenas um homem, é isso que você faz. Me deixa em suas mãos apenas para suprir a falta de amor próprio e sentir validação.

Caminhemos, talvez nos vejamos depois
Vida comprida, estrada alongada
Parto à procura de alguém ou à procura de nada
Vou indo, caminhando sem saber onde chegar
Quem sabe na volta te encontre no mesmo lugar

···ENCOSTO···

VOCÊ ME PEGOU PELOS BRAÇOS COMO SE EU FOSSE de vidro, como se eu fosse a criatura mais sublime existente, olhou-me com carinho e brilho tão únicos que me enchia de calor, disse palavras tão doces que ficaram tatuadas na minha mente. Era tanto amor, tanto carinho, tanto aconchego, tanta confiança, tantos segredos compartilhados, tantas vezes que nos deixamos sermos frágeis um para o outro — de nada vingou. Nada disso vingou, tudo se tornou um tempo perdido: eu não era ela. Tudo o que tu entregastes a mim nunca foi realmente para mim, foi tudo à ela, pensando nela, dedicado à ela, desejando ela. A verdadeira criatura sublime, de pele cintilante, lábios carmim, mãos de fada, risada que parece serem estrelas cadentes, cabelos negros como lençóis de seda e sua doçura é tão única, escassa, que minha essência de kiwi nem existe perto da essência de manga rosa dela.
Não sou nem sumo da fruta, nem sou as cascas. Sou amarga, áspera, irônica, intensa e apimentada. Machuco a mim mesma e a todos que se aproximam, mesmo quando não se há verdadeiramente intenção. Senti tanto ódio de ti, guardei tanto, mas tanto rancor! O que eu fiz de errado para não ser merecedora do seu amor?! Ao passo que odeio a mim por implorar um amor que não há porquê existir dentro de mim. Meu ego, o todo mesquinho, pulsa ao ver-te ir para longe de mim, de não haver dedicação a mim. Ouvi tanto, menti e manti uma esperança sem nexo, fui tão egoísta quanto já te condenei.
Creio que tu servisse como um encosto encarnado a minha vida que, por alguma razão ilógica, ainda insisto em manter essa enxaqueca. Caí na tua teia de aranha e de circo, deixe-te dar-me facadas, implorei a tua neurose, quis andar na montanha-russa da loucura que foi te amar. Agora, vou te devorar, te desmascarar, então te vomitar do meu corpo, te expulsar de vez. Desça descarga abaixo!
Por meio disto, o único conforto que me resta é saber que isso um dia irá passar, que não há sentido prolongar o sofrimento. Vai passar.
Vai passar.
Vai passar.
Vai passar..
Vai passar...
Vai pass...
Vai pa...
Vai...
Va...
...

···PASSOU···

É DIFÍCIL SE DESPRENDER DO PASSADO, principalmente quando se sente saudades.
Você não é bom para mim, por agora tive a tão sofrida confirmação, aquela que tanto fui ignorante e cega para perceber. Eu já sabia, mas me agarrei a esperança que tudo iria dar certo, que eu poderia lhe consertar. Que engano tolo.
Você deveria achar alguém melhor do que eu, alguém que você mereça.
Você tinha razão, eu encontrei. Esse alguém vem sendo aquilo que sempre desejei que você fosse, minha mais secreta idealização de dois para lá e dois para cá. Percebi outra coisa: lhe era mais maternal do que um amor ardente. Cuidei de um filho que saiu de outro ventre, este cuja a mulher já está cansada da maternidade. Não vou dar razão nem a você, nem a ela. Mãe e filho são os dois lados da mesma moeda.
Queria nunca ter sido cativada por você, pois fostes irresponsável por quem cativas. As pessoas não são um jogo que você joga quando necessita de distração para a própria mente conturbada. Já deves saber que machuca as pessoas mas não adianta persistir no erro, é burrice. Se você tem ciência da condição que lhe persegue, pense bem antes de cuidar de si mesmo, antes de subornar com doçura mais alguém que deseja a felicidade clandestina, a epítome da emoção. Você reclama que está sozinho, que ninguém gosta de você, mas não colabora com o que as relações interpessoais propõem. Vou te contar um segredo: todo mundo sente dor. O que lhe doi, também doi em outro. Não é difícil ser uma pessoa decente.
Me esqueça. Tire meu belo nome dos seus lábios asquerosos.

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