A Ninfa no Bosque
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| Tornando-se Amiga de Todas as Crianças do Mundo (2002), cor sobre seda montada em papel com suporte de folha metálica, Fuyuko Matsui |
O FRÍVOLO SERENO NOTURNO ERA ANUNCIADO pelo vento que rugia ferozmente, impetuoso contra todos que cruzassem seu caminho. Não era um período tempestuoso, longe disso, era uma daquelas noites gélidas de verão, amplificando-se em decorrência da altitude do local em que a residência fora construída e proporcionava uma força incontrolável, que fazia a criança ir aos berros diante dos gemidos sinistros de janelas e portas.
Tsukiyo, exausta de um longo dia, respirou fundo, em busca de todo o amor que havia prometido à criança — e a si mesma. Afagou-o, colocou-o em seu colo, balançando-o de um lado para o outro, enquanto cantava a singela cantiga.
Sinto um olhar em nossas costas
No fundo da mata, onde o vento não sopra
Começam murmúrios, vozes sem dono
Frente a frente
Espiam e riem
Olhos nos olhos
Vigiam em silêncio
Gente do bosque
Mas outro olhar começa a pesar
No fundo calado da clareira escura
O riso ecoa, a pele arrepia
Agora vemos, agora não
Frente a frente
Espiam e riem
Um só olhar
Olhos nos olhos
Vigiam em silêncio
Suas pálpebras, entreabertas, agora davam espaço para que, despreocupado com quaisquer monstros que se escondiam no exterior do conforto de seu quarto, permitisse ser vulnerável... Tsukiyo deu dois pequenos giros, o pondo na cama com uma delicadeza de Fada Açucarada e ele, já rendido, se aconchegou entre as cobertas. Ela deu um sorriso satisfeito.
Gente do bosque
Gente do bosque
Gente do bosque
Gente do bosque
Tsukiyo sentou-se nos fundos da casa, sobre um banco de madeira áspera, mergulhada em um silêncio apático, com a tela do bordado em seu colo enquanto seus dedos mexiam-se autônomos de comandos cerebrais. O luar prateado iluminava o quintal, espalhando sua luz sobre o pano e os pontos do molde, mas o vento, arrastando consigo o perfume das flores silvestres, balançava os longos fios ébano sobre seu rosto, atrapalhando que o trabalho fosse feito com maestria. Ela levantara o olhar de vez em quando para o satélite natural, que estava na sua fase minguante gibosa, contemplando sua grandiosidade ao surgir entre os galhos, cada sombra que parecia viva, cada feixe de luz despertara em si anseios e reflexões que desdobravam-na. A qualquer momento, a qualquer momento, pensava esperançosa, e terei seu calor para mim, e tal pensamento a fazia rir. Que ao chegar, abra a porta com força, largue tudo que estiver em mãos e tome-me pelos braços, trate-me como incólume, jogue-me na cama e redescubra-me! A qualquer momento, a qualquer momento! Fazia tanto tempo, sentia-se tão vazia sem a sensação de preenchimento e aqueles braços envoltos no seu torso. Ao olhar-se no espelho, pela manhã, analisou as finas marcas nos cantos do rosto, o olhar esguio, aprofundado pelas bolsas roxas, lábios murchos e rachados, desbotados, o que não roubava-lhe o orgulho era a visão das longas mechas escuras que emolduravam-na. Durante o banho, percorreu com as palmas sobre as estrias esbranquiçadas que marcavam-na, os seios que lembravam o esplendor de um instante, mas agora cediam ao curso inevitável da gravidade, suas curvas preenchidas por dobras de gordura e a proeminência abaixo do ventre, lembretes do embrulho que saiu de si. Será por isso que ele a evitava? Estava tão horrenda que o simples toque na sua pele desnuda provocaria repúdio? Não, não eram mudanças radicais, ainda era a mesma mulher que o encantou, no entanto qual seria o problema?
Ponto a ponto, o bordado deixava de ser um simples molde para tornar-se o desenho de um Kinguio malhado. Imerso na penumbra, o bosque emitia um mistério, um chamado para descobrir os segredos dentro de suas profundezas e, naquele instante, a mente de Tsukiyo não latejava para desbravar a vida cotidiana. A qualquer momento não era mais sobre o marido, mas sobre si mesma. Ao finalizar seu trabalho, não pôde deixar de admirá-lo, antes de deixá-lo de lado para sair do alpendre e pôr seus pés descalços na grama molhada. Aquele era o início de sua transmutação não apenas corporal, como também espiritual. Inspirou profundamente aquele ar que arrepiava-lhe a espinha, então entregou-se para seu estado de contemplação, deixando os braços abertos, como galhos secos e girou lentamente e a cada giro suas preocupações se dissolviam no vento. Ao erguer os braços para o céu, o bosque prendera a respiração e fora o suficiente para fazê-lo entender que ela não era uma qualquer. A lua pousou-lhe sobre a pele fria, um sinal claro de que Tsukuyomi a observava lá de cima, encantado, através da palidez lunar. Embora lenta, a dança tinha um ritmo denso, não era para ser somente gestos e movimentos repetitivos, de modo algum. Tsukiyo, o seu corpo, era um instrumento que conduzia harmonia, improvisações ou receios não lhe eram conhecidos, pois quando se há um chamado vocacional, não se foge.
No entanto, para seu desagrado, a voz do alpendre tirou-a do belo fluxo formado, retornou-a para o agora — que poderia muito bem ser deixado para depois.
— Amor, o que você está fazendo aí fora? — Leandro, pelo seu timbre, parecia genuinamente preocupado.
— Tô dançando com a lua. — respondeu com um sorriso.
Leandro a fitou bem, como se estivesse na procura de evidências que tornassem essa fala como uma piada, todavia a convicção de sua mulher o fez, incrédulo, soltar um riso anasalado.
— Você é mesmo uma peça rara, Tsukiyo.
Antes de retornar para junto do marido, Tsukiyo deu uma última olhada para o bosque, sentindo, em seu peito, que no momento que pisasse no piso cimentado, estaria abandonando uma parte essencial de si.
Dentro do lar, repetira-se a rotina de todos os dias: Tsukiyo reclamara do atraso de Leandro, ele respondera com uma desculpa vazia, e quando ela tentou aproximar-se, ele desviou o olhar, murmurando estar cansado. O silêncio que se seguiu foi o mesmo de sempre, aquele em que até o ar parecia saber que algo entre eles morrera há muito, mas insistia em respirar. Na verdade, poderia ser igual a todos os dias, exceto que agora Tsukiyo pode sentir, quando esteve muito perto dele, um perfume diferente do amadeirado habitual, um perfume doce. Se fosse mais ousada nas suas observações, poderia acrescentar a camisa amarrotada, que não era um amarrotado de movimentos de quem a utilizava, era de movimentos de outrem. Pior, poderia não fazer vista grossa para a marca avermelhada, muito semelhante a marcas de lábios tingidos de carmim, em sua jugular. Vendo-o agir com naturalidade, apesar de trazer todos esses sinais, fazia seu coração sangrar, como se fosse atingida pelos estilhaços dessa patifaria.
Noutro dia, Amaterasu despedia-se dos humanos, descendo atrás das árvores e filtrando a luz em tons dourados através do vidro da janela da cozinha. Otto brincava no chão, empilhando blocos de madeira, cantarolando distraído. A carne que Tsukiyo cortava parecia-lhe mais vibrante, um vermelho mais vivo que o lírio da aranha vermelha, fios de sangue escorriam sobre a tábua, pequenos rios que lembravam escamas. O silêncio era quebrado pelo som úmido da lâmina atravessando o tecido avermelhado — era o ponteiro dos segundos para o juízo final —, cada golpe apresentava a fúria contida, uma precisão fria ao deslizar, separar, abrir caminho entre as fibras e lipídios. O cheiro da carne fresca subiu pelas narinas de Tsukiyo, embriagado-a, a garganta apertou-se, o estômago retorceu-se de uma fome que não era humana e o sangue, quente e viscoso, escorria por seus dedos, enchia-lhe a boca de saliva. Ela encarou por um momento, aquele mar vermelho suculento, levou, tímida, um pedaço à boca, mastigando devagar a iguaria selvagem, apreciando a textura macia que pulsava sobre os dentes. Depois outro, e outro, e outro, e outro…. O quão alegre, o quão alegre estava agora! A sensação vertiginosa de completude, de que finalmente o vazio se preenchia e tocara os lábios, surpresa pela própria reação.
Otto levantou o olhar, curioso.
— Mamãe, você tá comendo o jantar antes?
Ela parou, limpou os lábios rapidamente com as costas da mão e sorriu.
— Só provando, querido. — respondeu, a voz mansa demais.
A mamãe é engraçada, Otto pensava inocentemente, voltando sua brincadeira. Desde a dança para Tsukuyomi, passou a existir aspectos peculiaridades em sua natureza anatômica, quando tocou o corpo, sentiu sob os dedos uma textura diferente, fria, como uma película de vidro, sensível à luz solar, as unhas duras, afiadas, que fizera um corte profundo no braço de Otto durante o banho e o espelho do banheiro estava coberto de pequenas manchas prateadas, como escamas finíssimas, tentou limpá-las, mas percebeu que não estavam no vidro. Estavam nela. Voltou-se para a carne na tábua, ainda palpitante, e pensou como o calor da vida se esvai rápido demais, como tudo.
Um ruído distante ecoou do bosque, Tsukiyo ergueu o olhar na direção da janela e teve a certeza de que o sussurro que o vento trouxera era o seu nome. Espreitou o olhar, para distinguir se o acontecimento era real ou apenas loucura e, como resposta, o chamado prolongou-se. Tsukiyo piscou, e por um instante, o reflexo no vidro não era o dela, era bestial, translúcido e pulsante, com olhos que refletiam o vermelho da carne sobre a tábua. O simples toque dos raios do crepúsculo sobre os braços queimavam como agulhas finas e, ofegante, recuou, mas a sombra projetada no chão não acompanhou o movimento. O relógio da cozinha parou. Otto continuava brincando, mas os blocos batiam no chão em um ritmo que ela conhecia, o mesmo da sua respiração quando sonhava com Tsukuyomi. Tsukiyo fechou os olhos e viu o reflexo de Amaterasu, distante e decepcionada, sumindo entre as nuvens. Seu peito subia e descia, retomando o ritmo familiar, ao abrir os olhos recuou um passo, pois o sangue na tábua não era mais vermelho, era prateado.
Otto riu de alguma coisa, mas o som veio distante, arrastado, como se o ar entre eles tivesse engrossado.
— Mamãe?
— Está tudo bem, querido. — mentiu.
Ao olhar novamente para a tábua, o líquido vermelho se movia lentamente, como a sangria em um açude. No horizonte, a lua aparecia em sua forma total, redonda e amarela, sua luz, embora fraca, estava determinada em iluminar a escuridão e desenterrar a verdade escondida. A qualquer momento.
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| Mantendo a Pureza (2004), cor sobre seda, pergaminho pendurado, Fuyuko Matsui |
Sentada em silêncio sobre os lençois macios, enquanto a lua cheia repousava no centro do céu, Tsukiyo se preparava para dormir, trançando seus cabelos pacientemente, cantarolando versos de uma cantiga, propositalmente fingindo não notar o olhar de Leandro sobre si. Por trás, ele aproximou-se e afastou uma mecha de cabelo, tocando-lhe o ombro nu com um beijo morno, com a mesma mão desceu da orelha para sua cintura, apertando-a, seus lábios subiram para o pescoço e ela segurou-se para não arfar, mas não conseguiu evitar pender a cabeça e o suspiro profundo que escapara. Nesse momento, poderia esquecer a raiva, entregar-se para o momento — e como ela queria, como sentia saudades do toque humano! —, porém os vislumbres das provas, que ele nem ao menos tivera a vergonha de esconder, vieram à mente. O ódio subiu-lhe como uma febre, o toque persistente daquele homem tornou-se nojo, com um movimento agressivo afastou-o de si e disse o mais seco “Não” que ele ouvira em sua vida. Leandro franziu o cenho, sua boca entreaberta, preparando-se para argumentar, mas então deu de ombros e deitou-se de costas para Tsukiyo, fazendo o favor de permanecer em silêncio. Costas contra costas, Tsukiyo prendia a respiração a fim de aliviar a garganta que queimava em secura, a maresia em seus olhos ardentes, a dor aguda em suas trompas uterinas. Virou-se de um lado para o outro entre os lençois — ao passo que Leandro roncava feito um porco —, a umidade viscosa espalhava-se pelo corpo, provocando-lhe calafrios; o sangue pulsava nas têmporas, o coração arfava desritmado e o gosto metálico, aquele mesmo presente no sangue da carne, se misturava com a saliva. Diante do prelúdio, cambaleou para o banheiro, agarrando-se ao vaso e vomitando tudo de ruim presente no seu interior. Ofegante e trêmula, limpou a boca com as costas da mão suada, esparramou-se pelo chão do banheiro, até que outra pontada acertou-a no centro de seu útero e um grunhido escapou-lhe. Precisava de ar, precisava urgentemente respirar o aroma do orvalho!
Abriu a porta da cozinha brutalmente e o uivo voraz que o vento dera soou como uma saudação, afinal, ambos ali, naquele momento, eram semelhantes. Tsukiyo olhou de relance para o céu, viu o satélite escondido entre as nuvens, em seguida a imensidão escura e nebulosa a sua frente. Os sussurros de mais cedo continuaram, desta vez, não era seu nome solto ao vento, era uma ordem, uma ordem que não poderia negar. “Venha, filha da noite, liberte-se.” Tsukiyo desceu do alpendre, os braços postos a frente do tronco, levantados para o céu como quem faz uma prece, no entanto a dor não deixou-a continuar no seu caminho e ela caiu de joelhos em cima de um formigueiro. Ela apertou os punhos e o sangue espalhou-se pelas palmas, espesso como tinta, ergueu a cabeça para o céu, em busca do clamor divino que ceifasse seu sofrer, porém as nuvens cobriram a lua por completo. Sem conseguir contê-las, lágrimas desceram quentes pelo rosto de Tsukiyo, seus braços agarram-se ao redor do tronco, apertando-o mais fortemente que a dor espalhada dentro de si, os músculos das pernas fraquejaram por tantas mordidas e ela encolheu-se ao cair. A dor de ser abandonada era pior que a dor que parecia-lhe o corpo.
Então outra dor, agora na região das costas, a atingiu, fazendo-a arquear-se sobre o chão, pois era como se um serrote a partisse em duas, abrindo espaço para o que ansiava nascer. Desesperada, contorceu-se no terreno, emitindo ruídos de horror que contracenavam com o canto da cigarra e o coaxar dos sapos, sua boca começou a espumar e engasgava-se com as lágrimas. Tsukiyomi contemplou sua criança e, por um instante, pareceu sentir pena, surgindo para iluminar a noite sombria e no momento que sua luz tocou na pele de Tsukiyo, ela sentiu dormência em relação a dor, por um segundo tudo estava em paz, até que um grito gutural rompeu-lhe a garganta.
O grito ecoou, transpassando o bosque e rompendo o tecido da noite. Tsukiyo arqueava o corpo, o som dos ossos lembrava madeira rachando sob a chama. O ar ao redor dela se distorcia, uma miragem úmida, de prata e rubra, e da pele aberta nas costas, algo se movia, lento, serpenteante, como asas que jamais aprenderiam a voar. Quando ergueu o rosto, a lua devolveu-lhe o reflexo: não havia mais pele, mas um brilho nacarado, escamado, translúcido. Tsukiyomi, lá do alto, suspirou.
Leandro foi arrancado do sono pelo som que rasgou a quietude serena da noite, seu coração palpitava no peito, a respiração vinha curta, e por um momento ele não soube se o som era do sonho ou da realidade. Tateou o outro lado da cama, no qual Tsukiyo costumava dormir, para deparar-se com o vazio e um calafrio percorreu por sua espinha. Engoliu em seco, arrastando o corpo pesado para fora da cama, tropeçando nos chinelos, a casa inteira parecia suspensa num silêncio, similar ao minuto antes da alvorada. Chamou-a — com cuidado para não acordar o filho — mais de uma vez, sem obter uma resposta sequer e só lhe restava ir buscá-la lá fora. O vento cortou-lhe o rosto, frio e úmido, trazendo o farfalhar das folhas e um odor enjoativo, metálico, que não soube identificar do que se tratava, mas que não lhe cheirava como coisa boa. A lua, soberana, era o único ponto de luz em meio a penumbra leitosa do quintal, iluminando, no capim alto, a camisola de Tsukiyo molhada de sangue e suja de terra. A visão apertou seu peito, ele engoliu em seco e, hesitante, deu o primeiro passo para a vastidão do bosque. O ar noturno parecia mais denso, carregado de aromas de terra, misturado, também, com algo mais intenso, metálico, que o fez prender a respiração. Cada passo esmagava pequenas poças de orvalho, produzindo estalos que pareciam ecos no silêncio, do canto do olho, percebeu algo se mover entre as árvores, uma sombra, fina, quase líquida, mas com formas humanas deformadas.
— Tsukiyo? — chamou, a voz falha. Não houve resposta, apenas um zumbido distante, que parecia o próprio nome dela.
Ele avançou, embora estivesse com um pressentimento ruim, o capim roçando nos tornozelos, os galhos cortando os braços, a cada passo, o bosque parecia se estender, as árvores afastando-se, como se o estivessem guiando. O aroma metálico intensificara-se, misturado com um cheiro almiscarado enjoativo, que o fez sentir um aperto no estômago. Mais adiante, algo se moveu. Primeiro, pensou ser o reflexo da luz sobre a água, mas então a forma ergueu-se, alta, delgada, tremulante, como se feita de véus líquidos, as bordas do corpo reluziam, cintilantes e aquele som… O som era o zumbido das asas de uma libélula e por um instante, seus traços humanos pareciam distorcidos. Uma mulher com asas finas e translúcidas, que refletiam a luz da lua como vidro quebrado, e olhos vermelhos que brilhavam com fome ou desafio. Ele engoliu em seco, a respiração se tornando rápida, o instinto gritando para recuar, mas algo o impelia a avançar. Estendeu a mão para tocá-la, para crer que existia tal criatura, mas ela recuou com uma graça fluída e hipnotizante em seus movimentos, o som de suas asas batendo suavemente no ar criava notas que ressoavam dentro de Leandro. Quando a criatura finalmente se afastou para as sombras mais densas do bosque, Leandro viu, à distância, o reflexo de Tsukiyo em uma poça d’água. Mas algo estava errado: seu reflexo não correspondia completamente. Os olhos brilhavam de maneira estranha, a pele parecia emitir um leve resplendor nacarado, como escamas finíssimas sob a luz da lua. Ele engoliu em seco, o sangue gélido nas veias.
— Tsukiyo… — murmurou, tentando manter a voz firme.
Não houvera resposta, apenas o sussurro constante do bosque, a sensação de que estava sendo observado, por aquela criatura, provavelmente, e o instinto gritou que era hora de sair. Tropeçando nas raízes, o peito arfando em incredulidade, a crescente dúvida de sua sanidade. Terá mesmo visto uma mulher-libélula? Quando alcançou a borda do quintal, a sensação de segurança era nula, por conta da visão que não desaparecia de sua cabeça, não importava quantas vezes assegurasse a si que apenas tivera um delírio, no entanto o zumbido ainda lhe era vivo, a forma graciosa que as asas moviam-se, exoesqueleto cintilante e, o que mais lhe assombrou, seus olhos, enormes, de um vermelho intenso… “Leandro… Leandro… Entregue-me seu coração, seja meu… só meu…” ao ouvir o sussurro meigo, sinistro, seu corpo moveu-se até a porta da cozinha o mais rápido que pode, fechando-a com força. Passou a mão pelos cachos negros, embora fosse um homem retinto, não se surpreenderia ao ver seu reflexo palecido no espelho. As batidas do seu coração reverberam nos ouvidos, os pelos corporais em pé, o suor frio que escorria-lhe pelo rosto.
— Tsukiyo? — murmurou, apenas para ouvir sua própria voz.
Do interior da cozinha, veio o som tranquilo de pratos sendo lavados. Ele se aproximou, em alerta. Tsukiyo estava ali, tranquila, o avental limpo, o cabelo trançado, o mesmo sorriso manso que ele conhecia.
— Tudo bem, amor? — perguntou ela, sem olhá-lo, a voz baixa, aveludada.
Leandro piscou, desnorteado.
— Onde você estava? — a pergunta saiu mais áspera do que pretendia.
Ela riu, sem parar o que fazia.
— Fui caminhar lá fora... quis respirar um pouco, o ar está tanto quanto pesado, não acha? — secou as mãos no pano e aproximou-se, pousando a cabeça em seu ombro.
Embora terno e familiar, o gesto trouxe-lhe desconforto, por mais que aquela fosse sua esposa de sempre, a mesma mansidão de quem já o recebera diversas vezes nas altas horas da noite, desta vez sua passividade não correspondia com a atitude zangada e distante de poucas horas atrás. Ele jamais entenderia as bruscas mudanças de humor das mulheres — agradecia que Otto fosse um garoto —, mas sabia que só deixar se dissolver na normalidade e acreditar que estava tudo bem, não aliviaria a corrente de adrenalina. Tsukiyo o olhou, por um segundo, jurou ver na íris um brilho prateado, pulsante, como o reflexo do luar sobre um lago.
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| Desvio de Luto (2010), cor sobre seda, pergaminho pendurado, Fuyuko Matsui |
Tsukiyomi permanecera em sua forma total apenas por mais aquela noite, após isso, afastaria-se dos dramas mortais. As cortinas dançavam com a brisa da janela aberta, o vento adentrava silenciosamente no quarto, prevendo o que se desenrolaria no luz tênue. Tsukiyo aproximou-se, a mão roçando a dele, o toque suave que sempre acalmara seu coração. Leandro engoliu em seco, a intuição dizendo-lhe para recuar, mas o corpo, atraído pelo desejo, não lhe obedeceu. Ela inclinou-se suavemente, e ele sentiu o odor, agora intenso, adocicado, diferente de qualquer cheiro que conhecera. Ela dera-lhe um sorriso maternal, familiar, em contrapartida seus olhos tinham um brilho sombrio e mórbido, mas a urgência de consumir o desejo o fez esquecer-se de qualquer hesitação e desconforto. As mãos dela acariciavam-no, os lábios provocavam arrepios, possuíam uma afeição intensa que beirava a possessividade, uma força sutil que o prendia, puxava-o para dentro do seu interior feminino, faminta por demasiado. Pequenas distorções corporais em Tsukiyo foram notadas por Leandro, como a rigidez dos contornos, levemente granulados — semelhante ao toque de uma cerâmica vitrificada —, o peculiar resplandecer na sua pele úmida, fria, fria demais para aquele momento estimulante. O êxtase da entrega aproximava-se, o corpo de Leandro ébrio de prazer e a visão de Tsukiyo por baixo, dominada, eletrizou-o por inteiro — como amava vê-la daquela maneira. Antes de atingir o ápice, Tsukiyo o segurou com força, uma garra quase inumana envolvendo-o, e sua boca envolveu o pescoço dele. Inicialmente, pensara que fosse um beijo profundo, mas logo sentiu a pontada aguda, o corte minúsculo e preciso, que liberava um líquido quente e espesso, chocado, tentou recurar, mas era ela que o dominava no momento.
A transmutação ocorreu diante de seus olhos: a pele dela reluzia com uma textura escamada e translúcida, os olhos captavam a luz de forma estranha, e as unhas, agora longas e afiadas, seguravam-no com precisão predatória. Leandro ousou desvencilhar-se do aperto, para ver-se preso à força descomunal de Tsukiyo, não pertencente à ordem dos vivos. Suas mãos finas, antes frágeis, agora o imobilizavam com firmeza inumana, e o calor a frieza em seu corpo fazendo-o estremecer. Encheu os pulmões de ar, preparando-se para gritar, mas a voz se perdeu em um sopro rouco, misturando-se ao compasso frenético do próprio coração, que pulsava nos ouvidos feito tambor de guerra. Tsukiyo fitava-o de um modo onde o amor e a fome se confundiam, o primeiro toque de seus lábios provara isto, já que não foi um beijo, foi investida. Mordeu-lhe o ombro, rasgando a carne com precisão cirúrgica, e o som úmido do dilacerar ecoou no quarto abafado, o sangue correu quente, denso, e Tsukiyo lambeu-o, degustou-o, como um vinho antigo. Cada pedaço era apreciado com cuidado, não havia pressa, apenas um banquete sombrio. Leandro sentia o corpo desfalecer, os membros enfraquecendo, e no meio do horror ainda era torturado por algo muito pior: as lembranças que guardava com carinho. O toque dela, o perfume conhecido, o olhar que outrora o fizera encantar-se. Tsukiyo parou ao chegar no peito, respiração se entrecortou, e um semblante de arrependimento cruzou-lhe o rosto, mas lembrou que naquela mesma cama, suas lágrimas já lhe arderam por demais. Agora era a vez dele. Com um suspiro profundo, rasgou o que restava da pele e envolveu o coração, pulsante e vivo, entre os dedos, aproximou-o dos lábios, o sangue escorreu pelo queixo, e em profunda satisfação, o consumiu.
Como uma das testemunhas do acontecimento, o vento brincou com os cabelos de Tsukiyo, preencheu seus ouvidos com uma gargalhada cínica. Aquilo que outrora fora seu marido, restava apenas a carcaça. Tsukiyo ergueu-se, ofegante, o rosto coberto de vestígios carmesins, contente por ficar por cima dele. A lua atravessou a janela e, ao tocá-la, revelou a plenitude da metamorfose: a pele cintilava como vidro úmido, as asas, transparentes, agora definitivas, batiam com leveza. Enquanto o luar a envolvia, Tsukiyo compreendeu: amara-o tanto que precisara possuí-lo inteiramente, porque, afinal, não era nada além de carne.








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